domingo, abril 01, 2007

Entrevista a Carlos Fiolhais

No Blog Viridarium publicou-se uma entrevista, conduzida pela bióloga Clara Pinto Correia, ao físico Carlos Fiolhais, que a seguir transcrevemos:

CARLOS FIOLHAIS
Como quem não esquece o deslumbre

Em finais de 2006, a Universidade de Évora atribuiu, pela primeira vez, o Prémio Rómulo de Carvalho, destinado a distinguir alguém que marque a diferença pelo seu contributo para a cultura científica, nomeadamente em áreas descuradas e no entanto fundamentais, como o Ensino e a História da Ciência. Agora, em Fevereiro de 2007, foi lançado o esperadíssimo Nova Física Divertida, segundo andamento de uma Física Divertida que embalou inúmeros leitores no prazer do pensamento científico nos últimos anos. O galardoado e o autor dos dois livros é Carlos Fiolhais, 50 anos, pai de um filho de 13, Professor Catedrático de Física da Universidade de Coimbra, e, mais recentemente, director da Biblioteca Geral dessa universidade, que inclui a riquíssima Biblioteca Joanina, senhora de milhares de volumes de veneranda sabedoria. Um homem que tem dedicado grande parte da sua energia intelectual ao prazer extremamente exigente de comunicar aos outros as coisas espantosas que sabe, como quem não esquece o deslumbre que acompanha a descoberta dos segredos do Universo e da aventura da vida. Um homem que gosta mesmo de contar histórias, histórias que vale a pena ouvir.

Fizemos questão de fotografar o Carlos na biblioteca mais antiga do país; mas, antes, fomos tranquilamente conversar para o café da Gulbenkian, cada um de nós com o seu pastel de nata delicioso. Grande, sorridente, este laureado é também um cidadão empenhado: veio de Coimbra a Lisboa para ouvir a conferência única de Al Gore no Museu da Electricidade, e agora está a fazer horas para marcar presença na “vernissage” da nova exposição do nosso grande mestre Jorge Calado. Tem tanta curiosidade, e por tanta coisa, que é preciso alertá-lo e repreendê-lo para manter o fio da conversa. “Sou assinante do JL desde o primeiro número”, diz ele. “Só há muito pouco tempo é que, com pena minha, deitei fora a enorme colecção que lá tinha em casa. Mas de vez em quando também leio o 24 horas”.

Está bem, mas, pelo amor de Deus, começa lá a história do princípio. É mesmo verdade que te doutoraste aos 26 anos?

Sim, mas não foi nada de especial. Fui estudar para Frankfurt e lá a rotina era essa. Depois voltei para Coimbra, treinei-me a dar muitas aulas e aprendi imenso com vários colegas. Depois, ao fim de uns anos, voltei a sair para trabalhar para New Orleans, a cidade mais fabulosa dos Estados Unidos. Estás a ver, aqueles pântanos, as mansões, os jacarés, a comida “cajun” que é uma delícia, a loucura de Bourbon Street... Gostei tanto que já lá voltei na minha segunda sabática. A Tulane foi uma universidade que me deu muita sorte…

Só sorte, ou também muito trabalho para ter sorte?

Ambas as coisas. Quando lá cheguei, o chefe do laboratório tinha acabado de descobrir uma fórmula, e distribuiu-a por cinco colaboradores, entre os quais eu próprio, para que cada um de nós estudasse uma aplicação prática. O artigo que publicámos já teve, até hoje, 4700 citações.

É obra. E o fenómeno continua?

Sim, porque aquela fórmula calcula uma energia dos electrões. E, por isso, usa-se em tudo o que é modelação molecular.

Se eras um VIP científico, por que é que te foste meter na tarefa ingrata da divulgação?

Em 1982, quando voltei de Frankfurt, estava a nascer a editora Gradiva, com a sua famosa colecção Ciência Aberta. Eu vinha todo cheio de cultura germânica, e achava que livros de divulgação bons eram os alemães. Mas gostava dos livros científicos que a Gradiva publicava. Escrevi uma carta ao editor, o Guilherme Valente, a dizer isso. Ele telefonou-me. Estivemos uma hora ao telefone. Sabes como é o Guilherme. E eu estava cheio de sangue na guelra… Combinámos encontrar-nos em Leiria.

Quer dizer, a meio caminho entre Lisboa e Coimbra?

Sim, é a terra dele. Foi óptimo. Falámos, falámos... nessa altura havia pouca divulgação em Portugal... Começámos a colaborar. Eu recomendava livros e fiz algumas traduções. Depois, em 1991, enchi-me de brios e escrevi o Física Divertida.

E foi um espantoso “best-seller”.

Bom, vai agora na sétima edição. Vendeu quase vinte mil exemplares. Em Portugal, de facto, é um número considerável.

Estavas à espera desse êxito?

Não. Foi um choque. Na altura, o José Mariano Gago escreveu no “Expresso” uma coisa gira, a dizer que eu tinha entrado para catedrático da Universidade da Gradiva, que era melhor que várias outras. Até fiquei envergonhado... sem jeito, sabes como é? Não aprendemos em lado nenhum a estar preparados para estas coisas.

Tens ideia do que é que seduziu as pessoas?

Repara, o título do livro é um paradoxo: nunca se pensa na Física como sendo divertida. O livro baseia-se em episódios da história da física, e creio que interessou tanto a miúdos como a universitários, porque era a antítese da física dos manuais escolares. Era uma prosa inspirada na colecção Ciência Para Gente Nova, de Rómulo de Carvalho. É prosa molhada, se quiseres, ao invés da prosa seca típica desses livros. Na escola, o que nos serviam como ciência eram fretes. E eu tentei falar de verdadeira ciência, com todo o seu brilho e cor. No secundário, a Física parecia-me por vezes um instrumento de tortura, um trato de polé. As minhas melhores notas eram a Filosofia e a Ciências Naturais, e não a Física ou a Matemática. Não fiquei a gostar de física na escola: encontrei-a nos livros de divulgação científica que trazia para casa da Biblioteca Municipal, onde por vinte e cinco tostões ao ano tinha acesso a tudo e mais alguma coisa. O que eu vibrei em miúdo com o Júlio Verne… E como fiquei fascinado com o átomo… Com o núcleo, que é o coração do átomo. Acabei por fazer o doutoramento sobre a cisão do núcleo.

O que é que te atraiu assim tanto para essas lides?

O núcleo do átomo é o mistério dos mistérios!

Em Biologia, a gente diz isso da reprodução...

À chaqu'un son gout. A gente não vê os núcleos. Eu pensava: gosto de dar aulas a pessoas, mas o que são elas comparado com o Cosmos? Fui atraído pelos mistérios cósmicos do muito pequeno. Percebi que podia alcançar essas dimensões… No secundário, sentia que os programas de Física me estavam a esconder qualquer coisa. E irritava-me: por que é que me escondem isto? Quando cheguei à Faculdade, encontrei o que estava escondido, o átomo com núcleo e electrões É paradoxal: o electrão é esquizofrénico! Pode estar em dois pontos ao mesmo tempo… Como é que ele faz isso? E as partículas que estão dentro do núcleo? Pronto, lá fui descobrir as leis do núcleo para a Alemanha. Sabes o que é que eu acho magnífico nisto? As leis da Natureza, a gente só pode descobri-las. Não pode, nunca, fazê-las.

O que é que tu descobriste?

Descobri melhor como se partia o núcleo atómico. Quando fui para New Orleans, a Física Nuclear, de que tanto gostava, já não estava na moda. Mas a Mecânica Quântica continuava a ser a mesma. Se a gente percebe bem, e a sério, de uma determinada coisa, depois pode aplicá-la a uma variedade grande de questões. No meu caso, podia perfeitamente utilizar o que sabia sobre os núcleos para estudar moléculas. Sempre com o computador. Acabado de doutorar, tinha comprado o primeiro PC da Universidade de Coimbra. Era um Olivetti que custou 500 contos. Isto foi em 1983, quando apareceram os primeiros computadores pessoais – tive imensa sorte com esta janela de tempo, como se ela tivesse esperado por mim… Hoje, o maior computador em Portugal para cálculo científico também está em Coimbra. Demos-lhe o nome de Milipeia, porque funciona como um bicho de mil patas que precisa que todas funcionem em uníssono para conseguir mover-se. Começámos por criar a Centopeia, que tinha mais de cem patas. E agora temos a Milipeia.

Por que é que, com a formação de físico que tens, acabaste por investir tanto tempo e energia nos computadores?

Não me puxes pela língua. Esta parte é fascinante. O computador, que vem da física, já nos deu muito, mas estou convencido de que ainda não deu tudo o que tem para dar-nos. Todos os dois anos o computador dá-nos o dobro. Isto está estudado. É a lei de Moore, o criador da Intel.

Peço desculpa, mas vais ter que explicar isso melhor.

Pensa nos transistores. São interruptores. Conforme os ligas ou não, passa ou não uma corrente eléctrica, tal como passa ou não água numa mangueira conforme pões o pé em cima ou o tiras. Tudo se faz a partir daqui, a partir de sinais de sim e não. Os transistores são cada vez mais pequenos; e, à medida que minguam, cabem vez mais no mesmo espaço: neste momento, há cerca de dez milhões de transistores num chip. Um PDA era impossível há poucos anos. É uma tecnologia que seria impossível se os transistores não fossem pequeninos. E vão ser menores. Olha: um micrómetro, o tamanho de uma célula, é o tamanho dos transistores actuais. Um nanometro, um milésimo do micrometro, é o tamanho de uma molécula orgânica, e os transistores vão ser deste tamanho. O que quer dizer que, nessa altura, um PDA poderá ser do tamanho de um cabelo. Não podemos descer abaixo do nível do átomo; mas, até aí, muita coisa se pode fazer..

Não há dimensões abaixo do átomo?

Há, mas é vazio até ao núcleo. E transístores com partículas do núcleo é ficção científica.

E o que é que vai acontecer, na prática, por causa do encolhimento dos transistores?

Pensa bem. Se a indústria automóvel tivesse progredido ao ritmo da indústria informática, eu hoje tinha um Ferrari pelo preço de uma bicicleta. Mas, no mundo dos computadores, já tenho o meu Ferrari ao custo da bicicleta. E, enquanto o Ferrari parou ali, os computadores continuam a ficar cada vez mais poderosos.

Então e as aplicações científicas desse fenómeno?

Sem computadores, toda a moderna ciência do caos seria impossível. Sempre se fizeram associações entre causas e efeitos, mas a ideia de que pequenas causas pode causar grandes efeitos é recente e deve-se ao computador.

Aquilo da borboleta que bate as asas no México e desencadeia um ciclone na China?

Sim, isso mesmo.

Eu estava a pensar em desenvolvimentos científicos que interferissem directamente com a vida de todos nós…

Há um conto do Jorge Luis Borges em que alguém quer fazer um mapa do tamanho de um império. Os computadores ainda não conseguem mapear o mundo dessa forma, mas para lá caminham. Basta lembrar que põem satélites em órbita com precisão e, por favor, isso é uma velharia dos anos 50. Com esses satélites prevê-se o tempo que vai fazer amanhã. Vamos prever cada vez melhor o futuro, porque vamos ter cada vez mais poder de cálculo.

Credo. E isso é bom, com os futuros que andam para aí a ser previstos?

Claro que é. Para já, porque, assim, temos a possibilidade de evitar o pior, por exemplo as alterações climáticas E temos a possibilidade de decidir – e que exige muito de nós, em maturidade - mas também nos dá muito em troca, em bem-estar e mesmo sobrevivência. Podemos fazer vários cenários, e depois escolher o futuro que queremos. E, num país democrático, quando o governo não quiser escolher o futuro que queremos, podemos tirá-lo nas eleições seguintes.

Até lá, o dito governo ainda tem tempo de fazer muita porcaria.

E tu queres viver em regime de golpe de Estado, é? Ainda hoje o Al Gore disse na conferência: numa democracia o poder político é um recurso renovável… Assim como o periscópio permite ver mais longe, o computador permite ver mais para diante. Podemos até alterar o mundo e criar mundos virtuais, como no filme “Matrix”. Podemos alterar virtualmente as leis da Natureza e ver se o mundo fica pior ou não.

Por exemplo?

Experimenta mudar a lei da gravidade no teu mundo virtual. Não demoras muito tempo a perceber que tudo deixa de funcionar. Perde-se logo a regularidade astronómica, por exemplo. E, sem ela, não há estações, não há climas, não há noites de Lua Cheia... Quando percebes que perfeito que isto é, que perfeitos são os fenómenos cósmicos que permitiram o aparecimento da vida, passas a gostar mais de estar no mundo. Já viste bem que fantástico tudo isto foi?

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